‘Seu’
Aníbal, morador antigo daquela rua no subúrbio, resolveu festejar os quinze
anos da filha caçula com uma bela festa. Mas resolveu fazer o arrasta-pé em sua
própria residência, já que morava em uma casa grande com amplo quintal. Ali ele
criava algumas galinhas, um cachorro que, apesar de vira-lata era valente, uma
tartaruguinha e dois papagaios. Coisa comum em casas de subúrbio.
Convidou
os moradores da rua e do bairro, principalmente a juventude, já que tinha três filhos:
a aniversariante, outra de dezessete e o filho mais velho, um rapaz com vinte
anos.
O
Aderbal, jovem de boa índole, morava no bairro duas ruas acima do ‘Seu’ Aníbal,
e era muito amigo do Rogério, o filho mais velho; além disso, andava arrastando
a asa para a Marilu, a filha do meio. Por isso foi dos primeiros a constar da
lista de convidados.
No
dia da festa Aderbal apareceu impecável. Vestiu sua melhor roupa e foi decidido
a conquistar definitivamente a Marilu. Como não jantou — já que não ia perder a
oportunidade de saborear os acepipes que sabia serem de primeira — comeu à
tardinha um sanduiche de presunto no bar do Galego para forrar o estômago até a
hora do rega-bofe. Mas o diabo do sanduiche bateu pesado e entrou em rixa com a
dobradinha do almoço, iguaria da qual não abria mão e que sua avó fazia tão
bem. Os dois, o sanduiche e a dobradinha não se deram bem e a toda hora
reclamavam um do outro.
O
fato é que, desde o momento do lanche começou a sentir-se indisposto e cheio de
borborigmos e flatulências que vinham incomodá-lo. Alguns ruídos surdos e
roucos demonstravam o movimento peristáltico das massas internas e o acúmulo de
ventosidades indesejadas; mas não perderia aquela festa por nada,
principalmente porque o tal sintoma era intermitente e, sendo assim, deixou
correr.
No
início estava tudo bem! Dançou, brincou, contou piada, namorou... As coisas
corriam às mil maravilhas. Ambos, ele e a Marilu, estavam em idílio, primeiro
enlevo, primeira dança, primeiro beijo... Um sonho! Veio o jantar e ambos
sentaram-se juntinhos de mãos dadas por baixo da toalha, saboreando o salpicão
e o pernil com a satisfação dos jovens sem muita preocupação com os problemas
pátrios ou mundiais. Dançavam todas as músicas tocadas... Em fim, estavam
felizes.
Mas
Deus põe e o diabo dispõe. Lá pela meia-noite Aderbal sentiu vontade de ir ao
banheiro para livrar-se de vez dos seus incômodos intestinais. A casa só tinha
um banheiro disponível e este estava sempre ocupado; pior tinha fila na porta,
e ele ficou com vergonha de pedir para usar a suíte privativa do segundo andar.
Mal recomeçou a música Marilu chamou-o para dançar e ele foi. Terminada a dança
correu novamente para o banheiro: ocupado! E o pior é que os sintomas estavam
piorando! A namorada foi outra vez buscá-lo para dançar e ele teve que
concordar. A esta altura já havia esforço e sacrifício de sua parte. Assim que se
teve nova chance Aderbal deu uma desculpa e correu para o banheiro pela
terceira vez. Novamente fechado!
A
essa altura o suor já descia em grossas bagas pela sua testa. Já nos extremo de
uma condição segura Aderbal esgueirou-se para o quintal! Estava escuro, mas
podia-se vislumbrar a silhueta de uma pilha de caixas e foi para lá que ele
correu a fim de aliviar-se daquele incômodo. Sem muito tempo para delongas foi
logo despindo as calças e despejando tudo que tinha direito com um alívio
típico dos que se encontram nessa difícil situação e conseguem tranquilizar as
entranhas revoltas. Foi uma quantidade bastante expressiva!
Terminando
o serviço, após limpar-se com papel que sempre trazia no bolso para emergências
desse tipo, sentiu vontade de examinar sua obra, curiosidade que, embora meio
mórbida, é natural à maioria das pessoas. Para tanto tirou do bolso o isqueiro
— era fumante o nosso herói — e acendeu-o iluminando o espaço onde depositara
seus restos.
Nada!
Nem o menor traço! Intrigado olhou de novo examinando ao redor: nada! Nem o
cheiro sobrara!
Com
medo que dessem pela sua falta voltou para a festa, confortável intestinalmente,
mas cheio de grilos na cabeça que não o deixavam se divertir a contento. “Tenho
certeza que fiz”, ruminava consigo mesmo. “Que mistério será este?”
O
resto da festa passou-se sem que ele se divertisse. Não esboçou mais seu
sorriso fácil e nem contou novas piadas. Estava xoxo e sorumbático, mais
meditabundo do que o normal. Marilu estranhou algumas vezes achando que o
namorado não estava gostando da festa, mas ele desconversava distraído e mudava
de assunto. Despediu-se taciturno e foi para casa ruminando o “tal enigma” do
inexplicável desaparecimento escatológico.
Não dormiu à noite. Tinha cochilos
intermitentes, cheios de pesadelos onde aparecia sempre alguma alusão ao
esdrúxulo caso. Simplesmente não havia explicação! Era um fato insólito o
mistério do cocô invisível.
Pela
manhã “acordou” mal, o rosto marcado pela insônia. Deitara tarde e levantara-se
cedo. Engoliu o café, que lhe soube amargo, desgostoso e decidiu averiguar
novamente “in loco” o que poderia ter acontecido. Foi andando pela rua da festa
e avistou, no portão, “seu” Aníbal que tinha o hábito de levantar-se cedo para
comprar o pão. Aproximou-se e cumprimentou:
—
Bom dia!
—
Bom dia — respondeu “seu” Aníbal —, os meninos ainda não se levantaram...
—
Não, não é com eles que eu quero falar... É que ontem eu perdi uma
cadernetinha, nada de valor, mas possui alguns números de telefone... Posso
procurar?
—
Claro! Entre e fique à vontade!
Aderbal
correu célere para a pilha de caixas e examinou minuciosamente o local: Nada!
Nem vestígio! Percorreu as proximidades e nem resquício, para seu desespero.
Voltou
desapontado:
—
É... Não achei! Devo ter perdido em outro lugar! Mas não é nada de valor —
disse com voz onde se notava uma pequena frustração.
“Seu”
Aníbal pegou a deixa e comentou:
—
Me arrependi da dar essa festa! Estou extremamente chateado!
—
É mesmo? O que houve? — perguntou o rapaz curioso.
—
Tem muita gente mal-educada — queixou-se o homem. — Gente sem coração que se
compraz em fazer maldades.
“Seu”
Aníbal estava mesmo chateado. Sua voz mostrava o profundo desgosto que lhe ia
ao íntimo. Aderbal meio sem jeito e preocupado que o velho poderia estar
chateado por causa de seu namoro com a Marilu ficou em silêncio esperando que
ele dissesse algo. “Seu” Aníbal prosseguiu:
—
Você sabe que nós temos um bichinho de estimação, o Tatá, um cágado que é o xodó
da casa! O bichinho não faz mal a ninguém, vive no seu cantinho comendo suas
folhinhas de alface... Não incomoda em nada. Todos os dias pela manhã ele vem
até nós para pedir sua comida...
Agora
“seu” Aníbal estava realmente desolado. Sua tristeza era visível. Com a voz
rouca continuou:
—
Hoje pela manhã estávamos, minha esposa e eu, sentados à mesa para o café quando
Tatá entrou... Coitadinho!
As
lágrimas rolaram pelo rosto do velho. A emoção foi demais, mas ele completou
entre soluços:
—
Fizeram cocô em cima do Tatá!
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