Foi o Ivan que deu a ideia da caçada.
—
Vamos sexta-feira à noite — disse ele. — O pessoal já está nos esperando lá na
fazenda Alto da Sucupira; são colonos, moram lá e é gente acostumada a caçar
paca. Entendem tudo sobre caça de paca e de tatu. Aliás, vocês sabiam que essas
caçadas são noturnas?
—
E como a gente vai? — perguntou Marcão.
—
No carro do Nando, lógico! — esclareceu Ivan. Vamos passar na minha casa de
campo que fica mais ou menos perto e, de lá para a fazenda.
Nando
que estava distraído olhando os peixinhos no aquário perguntou:
—
O que? Ir aonde?
Marcão
e Ivan riram bastante com o alheamento do Nando. Estavam os três conversando
após o jantar enquanto saboreavam um cafezinho preparado pela mulher do Marcão.
Ivan explicou ao Nando o plano da caçada na sexta feira.
—
Vamos no seu fusquinha — disse. — O Vantuil também vai, pois é ele que conhece
o pessoal da fazenda Alto da Sucupira. Amanhã vou falar com ele para entrar em
contato com os parentes dele que moram lá. A fazenda é enorme e tem muitos
colonos... Tem até um povoado dentro dela!
O
Vantuil era o caseiro do Ivan, rapaz prestativo, mas cabeça dura! Aliás, o nome
dele era Valter, Vantuil era apelido. Não me perguntem por quê.
Na sexta à tardinha os três já estavam prontos
para a aventura. Marcão deixou a esposa na casa da sogra, que era a mãe do
Nando.
—
Vai preparando a panela que vamos voltar cheios de pacas e tatus!
Arrumaram
mochilas, roupas especiais, sacos de dormir, fogareiro, lanterna, velas quatro
espingardas de cartucho, um rifle automático calibre 22, três revolveres 38 e
munição suficiente para exterminar toda a população de pacas e tatus
sobreviventes da Mata Atlântica. Arranjaram tudo da melhor forma possível no fusquinha
do Nando.
Passaram
na casa de campo do Ivan numa cidadezinha próxima para pegar o Vantuil e, às
dez da noite chegaram à venda onde havia sido marcada a reunião; os colonos que
iriam participar já se encontravam esperando no local. Tinha uns dez! Alguns
armados de cacete, outros de enxada... um verdadeiro exército de Branca Leone.
Um
deles, com pinta de chefe, falou:
—
A noite está fria, por isso antes de sair vamos tomar “uma” quente.
Os
olhinhos daquela cambada brilharam lançando chispas. A maioria passou a língua
pelos lábios antevendo o gostinho.
—
O que tem para beber? — perguntou o Marcão como se fosse o maior conhecedor do
assunto.
—
Aqui só tem Cachoeira... E das boas — respondeu o líder que se chamava Zé do
Galo.
—
Então salta a Cachoeira pra todo mundo — disparou o Ivan sem nem saber o que
era Cachoeira.
A
tal da Cachoeira era um cachaça fortíssima, 48 GL destilada ali mesmo; no fundo
do garrafão nadavam algumas pimentas do tipo malagueta “para dar o tempero”.
Encheram-se os copos. Todos emborcaram o seu de vez, numa golada só e sem qualquer
reclamação. Depois de sorver a última gota um sonoro ah saiu de onze gargantas.
Só os três citadinos — Vantuil era da
classe dos colonos — beberam somente a
metade do copo.
—
Que tal? — Perguntou o Zé do Galo.
Nando
estava com o gole entalado na boca sem saber se engolia ou cuspia. Venceu a
segunda opção e a cachaça saiu pulverizada da boca dele espalhando-se para
todos os lados. Marcão e Ivan engoliram, mas teria sido melhor se não tivessem
feito aquilo. A filha de Belzebu desceu queimando tudo: língua, garganta,
esôfago, entranhas... As lágrimas escorreram pelos olhos enquanto a fronte
latejava como se um martelo a golpeasse e um calor intenso subiu desde a sola
dos pés até a nuca.
—
Muito boa — disseram ambos com a voz sumida.
—
Então vamos levar o garrafão falou Zé do Galo. No caminho a gente dá conta
dele.
Soltaram
três cachorros magros e vira-latas que, segundo o dono, eram os melhores
caçadores do mundo e ele já tinha enjeitado vários contos de reis pelos três. É
bem possível que apenas ele acreditasse nisso.
Lá
pelas tantas, depois de inúmeros goles de cachoeira um dos cachorros começou a
latir. O Zé do Galo levantou o dedo e disse com voz de profundo conhecedor:
—
Latido de paca!
Sempre com a pinta de chefe, dividiu o grupo.
Coube ao Vantuil ficar na beira da água — um pequenino riacho — para cercar a
paca. E ali ficou montando guarda sozinho enquanto os outros se dividiam na
mata para tentar cercar o pobre bichinho. Para distrair deixaram com ele uma
garrafinha de Cachoeira. Depois de uma hora voltaram e encontraram-no recostado
em uma árvore ressonando. Inquiriram-no imediatamente:
—
Então? Matou a paca?
Vantuil
fez cara de quem não estava entendendo patavina!
—
A paca homem! Ela veio para cá — afirmou o Zé do Galo... — Você não viu?
O
caseiro, meio sem saber o que dizer perguntou:
—
Paca é um bicho marronzinho, com umas pintinhas no lombo e mais ou menos dois
palmos de comprimento?
—
Sim! — gritaram todos esperançosos.
—
Vi sim! — disse ele. — Mas eu não sabia que era ela e deixei ir embora.
Quase
mataram o pobre! Ivan chegou a ameaçá-lo com o desemprego e, como consolo,
secaram o garrafão da Cachoeira.
O
dia já vinha raiando quando voltaram cansados, mas, sobretudo bêbados para a
fazenda. Dormiram por ali mesmo num paiol abandonado. O dia já ia alto quando
eles acordaram numa ressaca terrível e começaram a ‘levantar acampamento’ para
voltar.
Nando
deixou o Ivan e o Vantuil na casa de campo e chisparam ele e Marcos para a
cidade. Na descida da serra pararam em
uma barraquinha e compraram alguns cachos de banana e uma abóbora bonita,
enorme...
Como
a esposa de Marcos era irmã de Nando foram para a casa deste onde ela aguardava
o marido. Os dois chegaram num estado lastimável, bastante arranhados da incursão no mato, pois
não estavam acostumados; isso sem falar das mordidas de pernilongos e outros
insetos que os deixaram empolados; e para completar tinham carrapatos pelo
corpo inteiro.
Depois
de um banho salutar e de haver catado os carrapatos, já sentados na sala, com
roupas limpas e perfumados, Solange, a esposa de Marcos perguntou:
—
Puxa, eu estou curiosa para ver o que vocês caçaram. Eu e mamãe estávamos aqui
morrendo de vontade de apreciar a tal paca que vocês disseram ser “o manjar dos
deuses”! Vamos ver logo esta iguaria sem par.
Apesar
da ironia que vazava daquelas palavras existia uma curiosidade implícita. Entretanto foi Dona Glória, mãe do Nando quem
pôs a água fria na fervura e acabou com o mistério. Ela, conhecedora das artes
do filho, já havia ido à garagem verificar a mala do carro e voltou com um
comentário que resumia tudo, tanto em gênero, como em número e grau.
—
Oh, a caçada foi ótima! — disse ela — Com tanto armamento pesado só poderiam
ter um sucesso formidável... Eles conseguiram matar dois cachos de banana e uma
enorme abóbora selvagem.
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