Quando
aconteceu o fato narrado, a casa servia como república para estudantes
universitários que cursavam algumas das faculdades existentes na cidade;
abrigava, na época, dez alunos distribuídos em quatro quartos: um grande e dois
pequenos no andar superior e um grande no andar de baixo. Jaime, Patrick e Pedro, alunos do sexto
semestre moravam no maior em cima. Renato Roberval, Severino e Cocada, alunos
do terceiro e quarto semestre ocupavam os dois outros quartos do segundo andar
e Jorge, Cyro e Henrique, novatos concluindo o primeiro semestre, o quarto do
térreo.
Já
há algum tempo os trotes pesados estavam abolidos... Mas os alunos veteranos
não dispensavam algumas brincadeiras tidas como “inocentes” com objetivo de construir
um congraçamento maior entre todos. Era o dia vinte de junho, quinta-feira,
véspera do solstício de inverno, noite fria e considerada a mais longa do ano.
Na semana seguinte entrariam em recesso até o final de julho.
Estavam
todos reunidos no quarto do Jaime. Patrick que era corpulento, embora sua voz
fosse absurdamente fina, falou, franzindo o cenho e fazendo uma careta, com seu
timbre de falsete:
—
Gente, já ia me esquecendo: amanhã, sexta feira, é o dia vinte e um de junho!
Jaime,
que era o mais velho e líder já que também se constituia no morador mais antigo
do Coruja, arregalou os olhos e deu um tapa na perna:
—
Deus como poderia passar em branco essa data? — disse. — Já nem me lembrava! É
o dia da baronesa!...
Cyro
deu uma risada sem graça típica dos que estão ‘voando’ no assunto, mas que não
querem dar o braço a torcer. Perguntou assim “inocentemente” como se tratasse
de algo sem importância:
—
É mesmo? E o que vem a ser isso?
Pedro
fez cara de desaprovação, balançou a cabeça e comentou:
—
Você não deveria ter tocado nesse assunto Patrick! Agora o Jorge, o Cyro e o
Henrique vão querer saber do que se trata... Deveria ter esperado para falar
depois da data... Na volta das férias de julho!
Os
três novatos entreolharam-se. Jorge passou a língua disfarçadamente pelos
lábios; não queria demonstrar curiosidade, mas estava intrigado. Finalmente
indagou:
—
O que significa essa data? Algum fato especial?
Renato,
outro veterano, procurou desconversar:
—
Ora não é nada! Bobagem do Patrick... Apenas superstições...
Jaime
interferiu:
—
Renato, agora que foi tocado o assunto é melhor contar logo. Eles ficarão
sabendo de qualquer forma... É até pecado deixá-los assim, na ignorância de um
fato tão estranho. Afinal de contas eles moram aqui!
Roberval,
Severino e Cocada, os outros três alunos antigos concordaram:
—
É isso mesmo — confirmou o Severino. — Ajoelhou tem que rezar! E agora Patrick:
ou você conta ou nós contamos?
Patrick
deu um suspiro e disse com a vozinha fina:
—
Está bem, vou contar. Mas depois não reclamem... O fato é que aconteceu uma tragédia
no casarão, justamente no dia vinte e um de junho...
—
E daí? — perguntaram em coro os três novatos.
O
Jaime pegou a deixa e prosseguiu com a fisionomia séria:
—
Deixa que eu conte Patrick... Você parece uma saracura falando! A casa
pertencia a um barão, figura importante do segundo império. A baronesa era
muito bonita, mas não era fiel. Na noite de vinte para vinte e um de junho —
justamente essa em que estamos hoje — o barão saiu para cumprir um compromisso
social. Era meia-noite quando ele regressou; mais cedo do que o previsto...
Quando subiu para o segundo andar escutou vozes que vinham da alcova do casal...
Jaime
parou um pouco para tomar fôlego. Henrique, impaciente pediu:
—
E daí? Conte logo que eu estou curioso.
—
Daí — continuou Jaime — que o barão foi pé-ante-pé e espiou para dentro do
quarto e viu...
—
O que? — perguntaram os três novatos.
—
O que seria lógico — explicou Jaime. — A baronesa estava de amores com um jovem
pajem na própria cama...
Silêncio
de suspense... Depois de quase um minuto Cyro perguntou:
—
Desembucha logo, pombas! O que aconteceu depois?
Jaime
saboreou o desfecho! A seguir concluiu com voz muito circunspecta:
—
Ai o barão ficou louco! E sacando da espada decepou a cabeça da baronesa de um
só golpe... e também transpassou o coração do jovem. Em seguida deu cabo de sua
própria vida... Uma tragédia!
Severino
concluiu:
—
O grande problema é que, segundo a tradição, na noite de vinte para vinte e um
de junho, à meia-noite. O fantasma da baronesa, decepado, vestido de branco e
levando a própria cabeça debaixo do braço desce as escadas em busca do amor de
seu amante...
—
Ora, isso é conversa fiada — desabafou Henrique. Eu não acredito em fantasmas...
—
Nem eu — cochichou Renato. — Mas no ano passado eu vi o tal fantasma!
Jaime
ponderou:
—
Está bem, existindo ou não existindo fantasmas é melhor a gente dormir porque
já é tarde e, caso a baronesa apareça, se estivermos dormindo não veremos, não
é mesmo? Portanto rua todo mundo... Chispa que já é hora cambada.
Todos
se retiraram cada qual para seu quarto.
Cyro,
Henrique e Jorge não dormiram de imediato. Ficaram durante algum tempo
discutindo a possibilidade de ser verdade o relato e estavam se divertindo com
a história da baronesa. Nesse instante ressoou na casa, vindo não se sabe
donde, doze badaladas... Silêncio... De repente um barulho como um fraco gemido
pungente. O ruído repetiu-se mais alto e foi continuando. Era algo abafado,
horripilante... Os jovens entreolharam-se! Ninguém ousava emitir uma opinião.
Novamente o gemido surdo terminando num lamento dramático.
Cyro,
mais cético e corajoso que os colegas, resolveu investigar: entreabriu a porta
do quarto e olhou para o topo da escada; uma luz de vela tremeluzente e pálida
iluminava frouxamente o trecho que trazia ao térreo. No topo foi surgindo do
nada uma figura toda vestida de branco! As vestes possuíam manchas vermelhas
como se fossem de sangue salpicando o espaço donde saiam os ombros e, dali,
pendia um dos braços, inerte, rente ao corpo... o pescoço estava perfeitamente
decepado; o vulto trazia embaixo do outro braço algo redondo e também tinto de
carmim, como se uma hemorragia tivesse ocorrido ali. Era uma imagem de gelar o
sangue.
Quando
os rapazes viram a aparição ficaram lívidos e trêmulos de terror. Não podiam
subir para o quarto de cima, pois o ‘fantasma’ estava no meio da escada e
soltava uivos e gemidos baixinhos, mas pavorosos, que assombravam até o mais
descrente dos homens. Gritaram pelos companheiros do andar de cima, mas um silêncio
total tomava conta do casarão. Não tiveram outro remédio senão correr para a
rua que, naturalmente devido ao avançado da hora em uma cidade do interior,
estava totalmente deserta.
No
quarto de cima os outros que espiavam por uma fresta torciam-se em risos.
Depois que os novatos fugiram o Severino, o paraibano baixinho que interpretara
a baronesa entrou no quarto e tirou a fantasia, muito bem arranjada por sinal,
perfeita com os braços postiços saindo do pescoço cortado onde existia um enchimento
para dar ideia de ombros e uma bola de futebol meio murcha dentro de uma fronha
imitando a cabeça decepada.
Todos
rolavam de tanto rir. Por isso inicialmente o barulho macio de unhas compridas
arranhando a porta do quarto devagar passou despercebido...
Entretanto
logo se ouviu um gemido pavoroso, lancinante... Uma gargalhada tétrica ecoou no
recinto enquanto uma voz metálica, trêmula, triste e inumana sussurrava da
porta:
—
Alguém me chamou?... Estou aqui!...
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