quinta-feira, 8 de agosto de 2013

UMA VISITA INESPERADA

O local chamava-se “O Coruja”. Fora batizado assim devido ao grande número daquela ave que à noite piava de forma agourenta e lúgubre nas árvores centenárias da chácara, um casarão colonial com sobrado e, mais ou menos, mil metros quadrados de área em terreno bastante arborizado. Como todo bom solar antigo, tinha a fama de mal-assombrado.
Quando aconteceu o fato narrado, a casa servia como república para estudantes universitários que cursavam algumas das faculdades existentes na cidade; abrigava, na época, dez alunos distribuídos em quatro quartos: um grande e dois pequenos no andar superior e um grande no andar de baixo.  Jaime, Patrick e Pedro, alunos do sexto semestre moravam no maior em cima. Renato Roberval, Severino e Cocada, alunos do terceiro e quarto semestre ocupavam os dois outros quartos do segundo andar e Jorge, Cyro e Henrique, novatos concluindo o primeiro semestre, o quarto do térreo.
Já há algum tempo os trotes pesados estavam abolidos... Mas os alunos veteranos não dispensavam algumas brincadeiras tidas como “inocentes” com objetivo de construir um congraçamento maior entre todos. Era o dia vinte de junho, quinta-feira, véspera do solstício de inverno, noite fria e considerada a mais longa do ano. Na semana seguinte entrariam em recesso até o final de julho.
Estavam todos reunidos no quarto do Jaime. Patrick que era corpulento, embora sua voz fosse absurdamente fina, falou, franzindo o cenho e fazendo uma careta, com seu timbre de falsete:
— Gente, já ia me esquecendo: amanhã, sexta feira, é o dia vinte e um de junho!
Jaime, que era o mais velho e líder já que também se constituia no morador mais antigo do Coruja, arregalou os olhos e deu um tapa na perna:
— Deus como poderia passar em branco essa data? — disse. — Já nem me lembrava! É o dia da baronesa!...
Cyro deu uma risada sem graça típica dos que estão ‘voando’ no assunto, mas que não querem dar o braço a torcer. Perguntou assim “inocentemente” como se tratasse de algo sem importância:
— É mesmo? E o que vem a ser isso?
Pedro fez cara de desaprovação, balançou a cabeça e comentou:
— Você não deveria ter tocado nesse assunto Patrick! Agora o Jorge, o Cyro e o Henrique vão querer saber do que se trata... Deveria ter esperado para falar depois da data... Na volta das férias de julho!
Os três novatos entreolharam-se. Jorge passou a língua disfarçadamente pelos lábios; não queria demonstrar curiosidade, mas estava intrigado. Finalmente indagou:
— O que significa essa data? Algum fato especial?
Renato, outro veterano, procurou desconversar:
— Ora não é nada! Bobagem do Patrick... Apenas superstições...
Jaime interferiu:
— Renato, agora que foi tocado o assunto é melhor contar logo. Eles ficarão sabendo de qualquer forma... É até pecado deixá-los assim, na ignorância de um fato tão estranho. Afinal de contas eles moram aqui!
Roberval, Severino e Cocada, os outros três alunos antigos concordaram:
— É isso mesmo — confirmou o Severino. — Ajoelhou tem que rezar! E agora Patrick: ou você conta ou nós contamos?
Patrick deu um suspiro e disse com a vozinha fina:
— Está bem, vou contar. Mas depois não reclamem... O fato é que aconteceu uma tragédia no casarão, justamente no dia vinte e um de junho...
— E daí? — perguntaram em coro os três novatos.
O Jaime pegou a deixa e prosseguiu com a fisionomia séria:
— Deixa que eu conte Patrick... Você parece uma saracura falando! A casa pertencia a um barão, figura importante do segundo império. A baronesa era muito bonita, mas não era fiel. Na noite de vinte para vinte e um de junho — justamente essa em que estamos hoje — o barão saiu para cumprir um compromisso social. Era meia-noite quando ele regressou; mais cedo do que o previsto... Quando subiu para o segundo andar escutou vozes que vinham da alcova do casal...
Jaime parou um pouco para tomar fôlego. Henrique, impaciente pediu:
— E daí? Conte logo que eu estou curioso.
— Daí — continuou Jaime — que o barão foi pé-ante-pé e espiou para dentro do quarto e viu...
— O que? — perguntaram os três novatos.
— O que seria lógico — explicou Jaime. — A baronesa estava de amores com um jovem pajem na própria cama...
Silêncio de suspense... Depois de quase um minuto Cyro perguntou:
— Desembucha logo, pombas! O que aconteceu depois?
Jaime saboreou o desfecho! A seguir concluiu com voz muito circunspecta:
— Ai o barão ficou louco! E sacando da espada decepou a cabeça da baronesa de um só golpe... e também transpassou o coração do jovem. Em seguida deu cabo de sua própria vida... Uma tragédia!
Severino concluiu:
— O grande problema é que, segundo a tradição, na noite de vinte para vinte e um de junho, à meia-noite. O fantasma da baronesa, decepado, vestido de branco e levando a própria cabeça debaixo do braço desce as escadas em busca do amor de seu amante...
— Ora, isso é conversa fiada — desabafou Henrique. Eu não acredito em fantasmas...
— Nem eu — cochichou Renato. — Mas no ano passado eu vi o tal fantasma!
Jaime ponderou:
— Está bem, existindo ou não existindo fantasmas é melhor a gente dormir porque já é tarde e, caso a baronesa apareça, se estivermos dormindo não veremos, não é mesmo? Portanto rua todo mundo... Chispa que já é hora cambada.
Todos se retiraram cada qual para seu quarto.
Cyro, Henrique e Jorge não dormiram de imediato. Ficaram durante algum tempo discutindo a possibilidade de ser verdade o relato e estavam se divertindo com a história da baronesa. Nesse instante ressoou na casa, vindo não se sabe donde, doze badaladas... Silêncio... De repente um barulho como um fraco gemido pungente. O ruído repetiu-se mais alto e foi continuando. Era algo abafado, horripilante... Os jovens entreolharam-se! Ninguém ousava emitir uma opinião. Novamente o gemido surdo terminando num lamento dramático.
Cyro, mais cético e corajoso que os colegas, resolveu investigar: entreabriu a porta do quarto e olhou para o topo da escada; uma luz de vela tremeluzente e pálida iluminava frouxamente o trecho que trazia ao térreo. No topo foi surgindo do nada uma figura toda vestida de branco! As vestes possuíam manchas vermelhas como se fossem de sangue salpicando o espaço donde saiam os ombros e, dali, pendia um dos braços, inerte, rente ao corpo... o pescoço estava perfeitamente decepado; o vulto trazia embaixo do outro braço algo redondo e também tinto de carmim, como se uma hemorragia tivesse ocorrido ali. Era uma imagem de gelar o sangue.
Quando os rapazes viram a aparição ficaram lívidos e trêmulos de terror. Não podiam subir para o quarto de cima, pois o ‘fantasma’ estava no meio da escada e soltava uivos e gemidos baixinhos, mas pavorosos, que assombravam até o mais descrente dos homens. Gritaram pelos companheiros do andar de cima, mas um silêncio total tomava conta do casarão. Não tiveram outro remédio senão correr para a rua que, naturalmente devido ao avançado da hora em uma cidade do interior, estava totalmente deserta.
No quarto de cima os outros que espiavam por uma fresta torciam-se em risos. Depois que os novatos fugiram o Severino, o paraibano baixinho que interpretara a baronesa entrou no quarto e tirou a fantasia, muito bem arranjada por sinal, perfeita com os braços postiços saindo do pescoço cortado onde existia um enchimento para dar ideia de ombros e uma bola de futebol meio murcha dentro de uma fronha imitando a cabeça decepada.
Todos rolavam de tanto rir. Por isso inicialmente o barulho macio de unhas compridas arranhando a porta do quarto devagar passou despercebido...
Entretanto logo se ouviu um gemido pavoroso, lancinante... Uma gargalhada tétrica ecoou no recinto enquanto uma voz metálica, trêmula, triste e inumana sussurrava da porta:

— Alguém me chamou?... Estou aqui!... 

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