segunda-feira, 25 de novembro de 2013

O dono da vaca


Sua idade era superior a oitenta e cinco anos! Entretanto ninguém lhe daria mais do que sessenta! Era de estatura mediana, compleição forte e peito atlético. Andava com uma foice sobre os ombros, pois vivia de cortar lenha na mata e vendê-la nas padarias que se utilizavam de madeira e gravetos para seus fornos. Acredita-se que era casado, ou viúvo; tinha filhos e netos já criados, mas não moravam com ele; vivia só. Todos os dias ele passava em frente à minha casa, sempre no mesmo horário; pela manhã subindo a rua e à tardinha de volta de seu trabalho. Seu nome: Jorge Correia.
Jorge, entretanto era peculiar: tinha uma maneira diferente de enxergar o mundo, uma filosofia sui generis que fazia dele uma figura impar. De fala maneirosa, do tipo amineirado, cheia de adjetivos exclusivos gostava de parar para um tiquinho de prosa, ocasião em que tirava o chapéu de couro, enxugava a testa e aceitava dois dedinhos de café. Numa dessas paradas contou-me um “causo” bastante interessante.
— Meu pai morreu quando eu tinha dezessete anos — começou ele iniciando a história.  — A essa altura minha mãe já se finara e eu fiquei sozinho no mundo. Não tinha nenhum contato com meus irmãos, todos mais velhos e espalhados um por cada canto; meu pai não deixou nada... ele mesmo não tinha onde cair morto! Portanto logo depois do enterro eu me vi tendo que viver às minhas próprias custas; e tudo que eu tinha resumia-se a cinco mil reis que eu levava no bolso, quantia que não dava para grandes coisas.
Parou para enrolar um cigarrinho de fumo de rolo na palha de milho. Depois prosseguiu.
— Eu sentia muita pena de mim mesmo... Falava com os meus botões: “Jorge, você não tem nada, esses cinco mil reis mal dão para dois dias de comida, você tem apenas a roupa do corpo e olhe lá!” Ia andando pelo caminho tristonho e remoendo aquilo; o que eu poderia fazer com tal quantia? E quanto mais eu pensava, mais triste eu ficava! Ah, como eu gostaria ter alguma coisa! Ser proprietário de uma gleba, de uma casinha... ou mesmo de uma plantação... Mas eu não tinha nada! Nem mesmo um carrinho de mão!
Passou a língua pelas gengivas lisas e deu um estalo; abanava a cabeça e sorria baixinho lembrando-se do passado! Satisfeito da vida continuou a narrativa:
— Pois é! Eu não tinha nada, nem mesmo para perder! Lá pelas onze horas quando a barriga ronca pedindo comida, passei por uma curva e deparei-me, na beira do caminho, com o Tonho, filho do seu Batista da venda, um moço de seus trinta anos que tinha um sitio, um parminho de terra perto do Ribeirão dos Poços. Ele estava junto a uma vaca deitada na barranca; bem do lado tinha uma cova recém-cavada significando que ele aguardava a morte do animal. Parando a seu lado perguntei:
Bastarde Tonho! Que qui cê tá fazendo olhando pra essa vaca doente?
esperando ela morrê, uai! Pra modi enterrá nessa vala qui eu cavei, sõ...
— Que a vaca teve? — investiguei curioso. — Foi raiva?
— Nada! Cascavel mesmo! Mordeu num faz nem meia-hora.  Tava escondidinha num capim da trilha... Eu podia até tentá sarvá a bicha, mas muito velha...  Vou esperá morrê — e fez um gesto com a cabeça indicando a cova.
Jorge ficou olhando com a mente fixa na lembrança recordando satisfeito a sua aventura. Depois de alguns segundos voltou à conversa:
— Pela minha cabeça passou um monte de coisas. Pelo menos o Tonho era mais feliz que eu, pois ele tinha uma vaca para perder. De chofre perguntei a ele:
— Quer vender a vaca?
— O que? — ele não acreditou no que eu havia proposto. — Você falou vender?
— Isso mesmo — disse eu. — Dou cinco mil reis.
— Mas ela morrendo, home! — falou admirado. — Daqui a pouquinho vai se finar...
— Não tem importância, eu compro assim mesmo! Como é, vai vender ou não vai?
Agora Jorge ria muito de sua própria aventura exibindo a boca desdentada:
— E aí eu comprei a vaca doente por cinco mil reis! O Tonho pegou seus cacos e foi-se embora e eu me ajeitei ali junto da vaca esperando chegar a hora da bichinha. O sol estava quente por demais, mas eu não arredei o pé até o momento em que ela deu o último estrebucho e morreu. E aí eu com todo o cuidado amarrei uma corda que eu trazia na algibeira pelas pernas dela e passei por trás, no tronco de uma arvezinha da beira do caminho. E fui puxando até que a bicha caiu na vala. E aí eu cobri com terra e fui-me embora.
Admirado interrompi a narrativa para perguntar:
— Puxa Jorge, você comprou uma vaca moribunda por cinco mil reis?... Pra que, homem?
Ele ria-se muito e confirmou:
— Isso mesmo, comprei a vaca e esperei ela morrer. Depois que enterrei fui-me embora...
Eu não conseguia atinar por que o Jorge fizera aquilo! Nem que ele fosse louco... Comprar uma vaca velha, picada por cascavel, sem salvação aparente e gastar ainda todo o seu dinheiro? Demais para a minha cabeça! Por isso pedi:
— Conte o resto Jorge! Agora fiquei curioso para saber o porquê, por mais que eu tente não consigo entender...
Jorge continuava rindo-se, principalmente da minha surpresa.
— Já chego lá — falou divertido. — Bem eu fui andando mais um quilômetro, se muito, e cheguei numa venda onde o pessoal parava pra jogar dois dedos de prosa fora, tomar cachaça e fazer aposta sobre qualquer coisa. Eu entrei com a cara triste, com o chapéu na mão, desenxabido... Virei pro caixeiro e pedi bem baixinho, mas pra todos escutarem:
— Dá uma cachaça fiado home!
Zé do Anzol perguntou curioso:
— Bebendo, Jorge? Porque tá assim? Inda é pela morte de seu pai?
Eu abanei a cabeça dizendo não.
— É pru modi que, então? — insistiu o cabra.
Respondi com a cabeça baixa:
— É que eu perdi uma vaca! Morreu agorinha mesmo... acabei de enterrá! Tão gordinha... maiada... Uma belezoca. Meu coração ficou pequenino por causa da bichinha, sô...
Todo mundo me olhou com respeito. Acho que ninguém ali tinha uma vaca. Eu olhei em volta: o pessoal, em silêncio, tava totalmente abobado... tudo admirado.
perdeu uma vaca, Jorge? Mas tinha uma vaca? — perguntou o Roque do Riachão.
— Tinha acabado de comprá  do Tonho — respondi. — É duro perder aquilo que a gente compra com tanta esperança. Dei todo o meu dinheiro nela!
— Começaram a me dar tapinhas no ombro e a me consolar:
— Fica triste não... Deus dá e Deus tira... Toma aqui essa cachaça... Come aqui essa carne seca...
Olhei para o Jorge e abanei a cabeça. Jamais poderia esperar aquele desfecho... Por isso perguntei:
— Você tem certeza de que é normal, Jorge? Porque, pensando bem, isso é pura loucura...
Caiu na gargalhada ante a minha perplexidade:
— Nada seu moço! Eu fiquei foi muito feliz! Eu, pelo menos tinha uma vaca para perder e agora minha tristeza tinha motivo. Fui proprietário de uma vaca... Por pouco tempo, mas fui!




Afinal, o que é paca?



Foi o Ivan que deu a ideia da caçada.
— Vamos sexta-feira à noite — disse ele. — O pessoal já está nos esperando lá na fazenda Alto da Sucupira; são colonos, moram lá e é gente acostumada a caçar paca. Entendem tudo sobre caça de paca e de tatu. Aliás, vocês sabiam que essas caçadas são noturnas?
— E como a gente vai? — perguntou Marcão.
— No carro do Nando, lógico! — esclareceu Ivan. Vamos passar na minha casa de campo que fica mais ou menos perto e, de lá para a fazenda.
Nando que estava distraído olhando os peixinhos no aquário perguntou:
— O que? Ir aonde?
Marcão e Ivan riram bastante com o alheamento do Nando. Estavam os três conversando após o jantar enquanto saboreavam um cafezinho preparado pela mulher do Marcão. Ivan explicou ao Nando o plano da caçada na sexta feira.
— Vamos no seu fusquinha — disse. — O Vantuil também vai, pois é ele que conhece o pessoal da fazenda Alto da Sucupira. Amanhã vou falar com ele para entrar em contato com os parentes dele que moram lá. A fazenda é enorme e tem muitos colonos... Tem até um povoado dentro dela!
O Vantuil era o caseiro do Ivan, rapaz prestativo, mas cabeça dura! Aliás, o nome dele era Valter, Vantuil era apelido. Não me perguntem por quê.
 Na sexta à tardinha os três já estavam prontos para a aventura. Marcão deixou a esposa na casa da sogra, que era a mãe do Nando.
— Vai preparando a panela que vamos voltar cheios de pacas e tatus!
Arrumaram mochilas, roupas especiais, sacos de dormir, fogareiro, lanterna, velas quatro espingardas de cartucho, um rifle automático calibre 22, três revolveres 38 e munição suficiente para exterminar toda a população de pacas e tatus sobreviventes da Mata Atlântica. Arranjaram tudo da melhor forma possível no fusquinha do Nando.
Passaram na casa de campo do Ivan numa cidadezinha próxima para pegar o Vantuil e, às dez da noite chegaram à venda onde havia sido marcada a reunião; os colonos que iriam participar já se encontravam esperando no local. Tinha uns dez! Alguns armados de cacete, outros de enxada... um verdadeiro exército de Branca Leone.
Um deles, com pinta de chefe, falou:
— A noite está fria, por isso antes de sair vamos tomar “uma” quente.
Os olhinhos daquela cambada brilharam lançando chispas. A maioria passou a língua pelos lábios antevendo o gostinho.
— O que tem para beber? — perguntou o Marcão como se fosse o maior conhecedor do assunto.
— Aqui só tem Cachoeira... E das boas — respondeu o líder que se chamava Zé do Galo.
— Então salta a Cachoeira pra todo mundo — disparou o Ivan sem nem saber o que era Cachoeira.
A tal da Cachoeira era um cachaça fortíssima, 48 GL destilada ali mesmo; no fundo do garrafão nadavam algumas pimentas do tipo malagueta “para dar o tempero”. Encheram-se os copos. Todos emborcaram o seu de vez, numa golada só e sem qualquer reclamação. Depois de sorver a última gota um sonoro ah saiu de onze gargantas. Só os três citadinos  — Vantuil era da classe dos colonos  — beberam somente a metade do copo.
— Que tal? — Perguntou o Zé do Galo.
Nando estava com o gole entalado na boca sem saber se engolia ou cuspia. Venceu a segunda opção e a cachaça saiu pulverizada da boca dele espalhando-se para todos os lados. Marcão e Ivan engoliram, mas teria sido melhor se não tivessem feito aquilo. A filha de Belzebu desceu queimando tudo: língua, garganta, esôfago, entranhas... As lágrimas escorreram pelos olhos enquanto a fronte latejava como se um martelo a golpeasse e um calor intenso subiu desde a sola dos pés até a nuca.
— Muito boa — disseram ambos com a voz sumida.
— Então vamos levar o garrafão falou Zé do Galo. No caminho a gente dá conta dele.
Soltaram três cachorros magros e vira-latas que, segundo o dono, eram os melhores caçadores do mundo e ele já tinha enjeitado vários contos de reis pelos três. É bem possível que apenas ele acreditasse nisso.
Lá pelas tantas, depois de inúmeros goles de cachoeira um dos cachorros começou a latir. O Zé do Galo levantou o dedo e disse com voz de profundo conhecedor:
— Latido de paca!
 Sempre com a pinta de chefe, dividiu o grupo. Coube ao Vantuil ficar na beira da água — um pequenino riacho — para cercar a paca. E ali ficou montando guarda sozinho enquanto os outros se dividiam na mata para tentar cercar o pobre bichinho. Para distrair deixaram com ele uma garrafinha de Cachoeira. Depois de uma hora voltaram e encontraram-no recostado em uma árvore ressonando. Inquiriram-no imediatamente:
— Então? Matou a paca?
Vantuil fez cara de quem não estava entendendo patavina!
— A paca homem! Ela veio para cá — afirmou o Zé do Galo... — Você não viu?
O caseiro, meio sem saber o que dizer perguntou:
— Paca é um bicho marronzinho, com umas pintinhas no lombo e mais ou menos dois palmos de comprimento?
— Sim! — gritaram todos esperançosos.
— Vi sim! — disse ele. — Mas eu não sabia que era ela e deixei ir embora.
Quase mataram o pobre! Ivan chegou a ameaçá-lo com o desemprego e, como consolo, secaram o garrafão da Cachoeira.
O dia já vinha raiando quando voltaram cansados, mas, sobretudo bêbados para a fazenda. Dormiram por ali mesmo num paiol abandonado. O dia já ia alto quando eles acordaram numa ressaca terrível e começaram a ‘levantar acampamento’ para voltar.
Nando deixou o Ivan e o Vantuil na casa de campo e chisparam ele e Marcos para a cidade.  Na descida da serra pararam em uma barraquinha e compraram alguns cachos de banana e uma abóbora bonita, enorme...
Como a esposa de Marcos era irmã de Nando foram para a casa deste onde ela aguardava o marido. Os dois chegaram num estado lastimável,  bastante arranhados da incursão no mato, pois não estavam acostumados; isso sem falar das mordidas de pernilongos e outros insetos que os deixaram empolados; e para completar tinham carrapatos pelo corpo inteiro.
Depois de um banho salutar e de haver catado os carrapatos, já sentados na sala, com roupas limpas e perfumados, Solange, a esposa de Marcos perguntou:
— Puxa, eu estou curiosa para ver o que vocês caçaram. Eu e mamãe estávamos aqui morrendo de vontade de apreciar a tal paca que vocês disseram ser “o manjar dos deuses”! Vamos ver logo esta iguaria sem par.
Apesar da ironia que vazava daquelas palavras existia uma curiosidade implícita.  Entretanto foi Dona Glória, mãe do Nando quem pôs a água fria na fervura e acabou com o mistério. Ela, conhecedora das artes do filho, já havia ido à garagem verificar a mala do carro e voltou com um comentário que resumia tudo, tanto em gênero, como em número e grau.

— Oh, a caçada foi ótima! — disse ela — Com tanto armamento pesado só poderiam ter um sucesso formidável... Eles conseguiram matar dois cachos de banana e uma enorme abóbora selvagem.

Coitadinho do Tatá

‘Seu’ Aníbal, morador antigo daquela rua no subúrbio, resolveu festejar os quinze anos da filha caçula com uma bela festa. Mas resolveu fazer o arrasta-pé em sua própria residência, já que morava em uma casa grande com amplo quintal. Ali ele criava algumas galinhas, um cachorro que, apesar de vira-lata era valente, uma tartaruguinha e dois papagaios. Coisa comum em casas de subúrbio.
Convidou os moradores da rua e do bairro, principalmente a juventude, já que tinha três filhos: a aniversariante, outra de dezessete e o filho mais velho, um rapaz com vinte anos.
O Aderbal, jovem de boa índole, morava no bairro duas ruas acima do ‘Seu’ Aníbal, e era muito amigo do Rogério, o filho mais velho; além disso, andava arrastando a asa para a Marilu, a filha do meio. Por isso foi dos primeiros a constar da lista de convidados.
No dia da festa Aderbal apareceu impecável. Vestiu sua melhor roupa e foi decidido a conquistar definitivamente a Marilu. Como não jantou — já que não ia perder a oportunidade de saborear os acepipes que sabia serem de primeira — comeu à tardinha um sanduiche de presunto no bar do Galego para forrar o estômago até a hora do rega-bofe. Mas o diabo do sanduiche bateu pesado e entrou em rixa com a dobradinha do almoço, iguaria da qual não abria mão e que sua avó fazia tão bem. Os dois, o sanduiche e a dobradinha não se deram bem e a toda hora reclamavam um do outro.
O fato é que, desde o momento do lanche começou a sentir-se indisposto e cheio de borborigmos e flatulências que vinham incomodá-lo. Alguns ruídos surdos e roucos demonstravam o movimento peristáltico das massas internas e o acúmulo de ventosidades indesejadas; mas não perderia aquela festa por nada, principalmente porque o tal sintoma era intermitente e, sendo assim, deixou correr.
No início estava tudo bem! Dançou, brincou, contou piada, namorou... As coisas corriam às mil maravilhas. Ambos, ele e a Marilu, estavam em idílio, primeiro enlevo, primeira dança, primeiro beijo... Um sonho! Veio o jantar e ambos sentaram-se juntinhos de mãos dadas por baixo da toalha, saboreando o salpicão e o pernil com a satisfação dos jovens sem muita preocupação com os problemas pátrios ou mundiais. Dançavam todas as músicas tocadas... Em fim, estavam felizes.
Mas Deus põe e o diabo dispõe. Lá pela meia-noite Aderbal sentiu vontade de ir ao banheiro para livrar-se de vez dos seus incômodos intestinais. A casa só tinha um banheiro disponível e este estava sempre ocupado; pior tinha fila na porta, e ele ficou com vergonha de pedir para usar a suíte privativa do segundo andar. Mal recomeçou a música Marilu chamou-o para dançar e ele foi. Terminada a dança correu novamente para o banheiro: ocupado! E o pior é que os sintomas estavam piorando! A namorada foi outra vez buscá-lo para dançar e ele teve que concordar. A esta altura já havia esforço e sacrifício de sua parte. Assim que se teve nova chance Aderbal deu uma desculpa e correu para o banheiro pela terceira vez. Novamente fechado!
A essa altura o suor já descia em grossas bagas pela sua testa. Já nos extremo de uma condição segura Aderbal esgueirou-se para o quintal! Estava escuro, mas podia-se vislumbrar a silhueta de uma pilha de caixas e foi para lá que ele correu a fim de aliviar-se daquele incômodo. Sem muito tempo para delongas foi logo despindo as calças e despejando tudo que tinha direito com um alívio típico dos que se encontram nessa difícil situação e conseguem tranquilizar as entranhas revoltas. Foi uma quantidade bastante expressiva!
Terminando o serviço, após limpar-se com papel que sempre trazia no bolso para emergências desse tipo, sentiu vontade de examinar sua obra, curiosidade que, embora meio mórbida, é natural à maioria das pessoas. Para tanto tirou do bolso o isqueiro — era fumante o nosso herói — e acendeu-o iluminando o espaço onde depositara seus restos.
Nada! Nem o menor traço! Intrigado olhou de novo examinando ao redor: nada! Nem o cheiro sobrara!
Com medo que dessem pela sua falta voltou para a festa, confortável intestinalmente, mas cheio de grilos na cabeça que não o deixavam se divertir a contento. “Tenho certeza que fiz”, ruminava consigo mesmo. “Que mistério será este?”
O resto da festa passou-se sem que ele se divertisse. Não esboçou mais seu sorriso fácil e nem contou novas piadas. Estava xoxo e sorumbático, mais meditabundo do que o normal. Marilu estranhou algumas vezes achando que o namorado não estava gostando da festa, mas ele desconversava distraído e mudava de assunto. Despediu-se taciturno e foi para casa ruminando o “tal enigma” do inexplicável desaparecimento escatológico.
 Não dormiu à noite. Tinha cochilos intermitentes, cheios de pesadelos onde aparecia sempre alguma alusão ao esdrúxulo caso. Simplesmente não havia explicação! Era um fato insólito o mistério do cocô invisível.
Pela manhã “acordou” mal, o rosto marcado pela insônia. Deitara tarde e levantara-se cedo. Engoliu o café, que lhe soube amargo, desgostoso e decidiu averiguar novamente “in loco” o que poderia ter acontecido. Foi andando pela rua da festa e avistou, no portão, “seu” Aníbal que tinha o hábito de levantar-se cedo para comprar o pão. Aproximou-se e cumprimentou:
— Bom dia!
— Bom dia — respondeu “seu” Aníbal —, os meninos ainda não se levantaram...
— Não, não é com eles que eu quero falar... É que ontem eu perdi uma cadernetinha, nada de valor, mas possui alguns números de telefone... Posso procurar?
— Claro! Entre e fique à vontade!
Aderbal correu célere para a pilha de caixas e examinou minuciosamente o local: Nada! Nem vestígio! Percorreu as proximidades e nem resquício, para seu desespero.
Voltou desapontado:
— É... Não achei! Devo ter perdido em outro lugar! Mas não é nada de valor — disse com voz onde se notava uma pequena frustração.
“Seu” Aníbal pegou a deixa e comentou:
— Me arrependi da dar essa festa! Estou extremamente chateado!
— É mesmo? O que houve? — perguntou o rapaz curioso.
— Tem muita gente mal-educada — queixou-se o homem. — Gente sem coração que se compraz em fazer maldades.
“Seu” Aníbal estava mesmo chateado. Sua voz mostrava o profundo desgosto que lhe ia ao íntimo. Aderbal meio sem jeito e preocupado que o velho poderia estar chateado por causa de seu namoro com a Marilu ficou em silêncio esperando que ele dissesse algo. “Seu” Aníbal prosseguiu:
— Você sabe que nós temos um bichinho de estimação, o Tatá, um cágado que é o xodó da casa! O bichinho não faz mal a ninguém, vive no seu cantinho comendo suas folhinhas de alface... Não incomoda em nada. Todos os dias pela manhã ele vem até nós para pedir sua comida...
Agora “seu” Aníbal estava realmente desolado. Sua tristeza era visível. Com a voz rouca continuou:
— Hoje pela manhã estávamos, minha esposa e eu, sentados à mesa para o café quando Tatá entrou... Coitadinho!
As lágrimas rolaram pelo rosto do velho. A emoção foi demais, mas ele completou entre soluços:
— Fizeram cocô em cima do Tatá!