Sua
idade era superior a oitenta e cinco anos! Entretanto ninguém lhe daria mais do
que sessenta! Era de estatura mediana, compleição forte e peito atlético.
Andava com uma foice sobre os ombros, pois vivia de cortar lenha na mata e
vendê-la nas padarias que se utilizavam de madeira e gravetos para seus fornos.
Acredita-se que era casado, ou viúvo; tinha filhos e netos já criados, mas não
moravam com ele; vivia só. Todos os dias ele passava em frente à minha casa,
sempre no mesmo horário; pela manhã subindo a rua e à tardinha de volta de seu
trabalho. Seu nome: Jorge Correia.
Jorge,
entretanto era peculiar: tinha uma maneira diferente de enxergar o mundo, uma
filosofia sui generis que fazia dele
uma figura impar. De fala maneirosa, do tipo amineirado, cheia de adjetivos
exclusivos gostava de parar para um tiquinho de prosa, ocasião em que tirava o
chapéu de couro, enxugava a testa e aceitava dois dedinhos de café. Numa dessas
paradas contou-me um “causo” bastante
interessante.
—
Meu pai morreu quando eu tinha dezessete anos — começou ele iniciando a
história. — A essa altura minha mãe já se
finara e eu fiquei sozinho no mundo. Não tinha nenhum contato com meus irmãos,
todos mais velhos e espalhados um por cada canto; meu pai não deixou nada...
ele mesmo não tinha onde cair morto! Portanto logo depois do enterro eu me vi
tendo que viver às minhas próprias custas; e tudo que eu tinha resumia-se a
cinco mil reis que eu levava no bolso, quantia que não dava para grandes
coisas.
Parou
para enrolar um cigarrinho de fumo de rolo na palha de milho. Depois
prosseguiu.
—
Eu sentia muita pena de mim mesmo... Falava com os meus botões: “Jorge, você
não tem nada, esses cinco mil reis mal dão para dois dias de comida, você tem apenas
a roupa do corpo e olhe lá!” Ia andando pelo caminho tristonho e remoendo
aquilo; o que eu poderia fazer com tal quantia? E quanto mais eu pensava, mais
triste eu ficava! Ah, como eu gostaria ter alguma coisa! Ser proprietário de
uma gleba, de uma casinha... ou mesmo de uma plantação... Mas eu não tinha
nada! Nem mesmo um carrinho de mão!
Passou
a língua pelas gengivas lisas e deu um estalo; abanava a cabeça e sorria
baixinho lembrando-se do passado! Satisfeito da vida continuou a narrativa:
—
Pois é! Eu não tinha nada, nem mesmo para perder! Lá pelas onze horas quando a
barriga ronca pedindo comida, passei por uma curva e deparei-me, na beira do
caminho, com o Tonho, filho do seu Batista da venda, um moço de seus trinta
anos que tinha um sitio, um parminho
de terra perto do Ribeirão dos Poços. Ele estava junto a uma vaca deitada na
barranca; bem do lado tinha uma cova recém-cavada significando que ele
aguardava a morte do animal. Parando a seu lado perguntei:
—
Bastarde Tonho! Que qui cê tá fazendo olhando pra essa vaca
doente?
—
Tô esperando ela morrê, uai! Pra modi enterrá
nessa vala qui eu cavei, sõ...
—
Que a vaca teve? — investiguei curioso. — Foi raiva?
—
Nada! Cascavel mesmo! Mordeu num faz
nem meia-hora. Tava escondidinha num capim da trilha... Eu podia até tentá sarvá a bicha, mas tá muito velha... Vou esperá
morrê — e fez um gesto com a cabeça indicando a cova.
Jorge
ficou olhando com a mente fixa na lembrança recordando satisfeito a sua
aventura. Depois de alguns segundos voltou à conversa:
—
Pela minha cabeça passou um monte de coisas. Pelo menos o Tonho era mais feliz
que eu, pois ele tinha uma vaca para perder. De chofre perguntei a ele:
—
Quer vender a vaca?
—
O que? — ele não acreditou no que eu havia proposto. — Você falou vender?
—
Isso mesmo — disse eu. — Dou cinco mil reis.
—
Mas ela tá morrendo, home! — falou admirado. — Daqui a
pouquinho vai se finar...
—
Não tem importância, eu compro assim mesmo! Como é, vai vender ou não vai?
Agora
Jorge ria muito de sua própria aventura exibindo a boca desdentada:
—
E aí eu comprei a vaca doente por cinco mil reis! O Tonho pegou seus cacos e
foi-se embora e eu me ajeitei ali junto da vaca esperando chegar a hora da
bichinha. O sol estava quente por demais, mas eu não arredei o pé até o momento
em que ela deu o último estrebucho e morreu. E aí eu com todo o cuidado amarrei
uma corda que eu trazia na algibeira pelas pernas dela e passei por trás, no
tronco de uma arvezinha da beira do
caminho. E fui puxando até que a bicha caiu na vala. E aí eu cobri com terra e
fui-me embora.
Admirado
interrompi a narrativa para perguntar:
—
Puxa Jorge, você comprou uma vaca moribunda por cinco mil reis?... Pra que,
homem?
Ele
ria-se muito e confirmou:
—
Isso mesmo, comprei a vaca e esperei ela morrer. Depois que enterrei fui-me
embora...
Eu
não conseguia atinar por que o Jorge fizera aquilo! Nem que ele fosse louco...
Comprar uma vaca velha, picada por cascavel, sem salvação aparente e gastar
ainda todo o seu dinheiro? Demais para a minha cabeça! Por isso pedi:
—
Conte o resto Jorge! Agora fiquei curioso para saber o porquê, por mais que eu
tente não consigo entender...
Jorge continuava
rindo-se, principalmente da minha surpresa.
— Já chego lá —
falou divertido. — Bem eu fui andando mais um quilômetro, se muito, e cheguei
numa venda onde o pessoal parava pra jogar dois dedos de prosa fora, tomar
cachaça e fazer aposta sobre qualquer coisa. Eu entrei com a cara triste, com o
chapéu na mão, desenxabido... Virei pro caixeiro e pedi bem baixinho, mas pra
todos escutarem:
— Dá uma cachaça
fiado home!
Zé do Anzol
perguntou curioso:
— Bebendo,
Jorge? Porque tá assim? Inda é pela morte de seu pai?
Eu abanei a
cabeça dizendo não.
— É pru modi que, então? — insistiu o
cabra.
Respondi com a
cabeça baixa:
— É que eu perdi
uma vaca! Morreu agorinha mesmo... acabei de enterrá! Tão gordinha...
maiada... Uma belezoca. Meu coração ficou pequenino por causa da bichinha,
sô...
Todo mundo me
olhou com respeito. Acho que ninguém ali tinha uma vaca. Eu olhei em volta: o
pessoal, em silêncio, tava totalmente abobado... tudo admirado.
— Cê perdeu uma vaca, Jorge? Mas cê tinha uma vaca? — perguntou o Roque
do Riachão.
— Tinha acabado
de comprá do Tonho — respondi. — É duro perder aquilo
que a gente compra com tanta esperança. Dei todo o meu dinheiro nela!
— Começaram a me
dar tapinhas no ombro e a me consolar:
— Fica triste
não... Deus dá e Deus tira... Toma aqui essa cachaça... Come aqui essa carne
seca...
Olhei para o
Jorge e abanei a cabeça. Jamais poderia esperar aquele desfecho... Por isso
perguntei:
— Você tem
certeza de que é normal, Jorge? Porque, pensando bem, isso é pura loucura...
Caiu na
gargalhada ante a minha perplexidade:
— Nada seu moço!
Eu fiquei foi muito feliz! Eu, pelo menos tinha uma vaca para perder e agora
minha tristeza tinha motivo. Fui proprietário de uma vaca... Por pouco tempo,
mas fui!